segunda-feira, 7 de abril de 2014

Relato do viajante Ibn Battuta

Ibn Battuta

Ibn Battuta chega ao rio Níger, que erroneamente acredita ser o Nilo
         O Nilo [na verdade, o Níger] flui de lá até Kabara, e daí para Zagha. Tanto em Kabara e Zagha há sultões que devem fidelidade ao rei de Mali.            Os habitantes de Zagha estão atualizados sobre o Islã; eles mostram grande devoção e zelo para o estudo.
         O Nilo [Níger] desce para Timbuctu [Tombucto] e Gawgaw [Gao], que serão descritas mais tarde; depois para a cidade de Muli na terra dos Limis, que é a província de fronteira do [reino do]
Mali; daí a Yufi, uma das maiores cidades dos negros, cujo governante é um dos mais importantes dos governantes negros. Não pode ser visitado por homem branco, porque eles iriam matá-lo antes que ele chegasse lá.

Um crocodilo
         Eu vi um crocodilo nesta parte do Nilo, perto da margem, que parecia um pequeno barco. Um dia eu fui até o rio para satisfazer minhas necessidades e eis que um dos negros veio e ficou entre eu e o rio. Fiquei espantado com tamanha falta de boas maneiras e decência da sua parte, e falei sobre isso para outra pessoa.
[Essa pessoa] respondeu. "Seu propósito ao fazer isso foi apenas para protegê-lo contra o crocodilo, colocando-se entre você e ele."

Ibn Battuta chega à cidade de Mali, capital do reino do Mali.
         Assim que cheguei à cidade de Mali, a capital do rei dos negros, eu parei no cemitério e fui ao bairro ocupado pelos brancos, onde perguntei por Muhammad Ibn al-Faqih. Achei que ele tinha alugado uma casa para mim e fui lá. Seu genro me trouxe velas e alimentos, e no dia seguinte Ibn al-Faqih veio me visitar, com outros moradores importantes. Eu conheci o qadi [juiz muçulmano] do Mali, 'Abd ar-Rahman, que veio me ver; ele é negro, um peregrino, e um homem de excelente caráter. Conheci também o intérprete dugha, que é um dos principais homens entre os negros.    Todas estas pessoas me enviaram alimentos de boas vindas e trataram-me com generosidade extrema - que Deus possa recompensá-los por sua bondade!
         Dez dias depois da nossa chegada, comemos um mingau feito de algo semelhante à raiz de colocasia [inhame], que é o alimento preferido para eles encontrado em todos os outros pratos.
Nós todos adoecemos - éramos seis pessoas - e um dos nossos morreu. Fui para a oração da manhã e desmaiei lá. Perguntei a um egípcio, por um remédio e ele me deu uma coisa chamada "Baydar", feito de raízes vegetais, que misturamos com anis e açúcar, e colocamos na água. Bebi isto e vomitei o que tinha comido, juntamente com uma grande quantidade de bile. Deus preservou-me da morte, mas eu fiquei doente por dois meses.

Ibn Battuta conhece o rei do Mali
         O sultão de Mali é Mansa Sulayman, "mansa", que significa [em Mandinga] sultão, e Sulayman é o seu próprio nome. Ele é um rei mesquinho, não um homem de quem se poderia esperar um rico presente.        Aconteceu que eu passei esses dois meses sem vê-lo, por conta da minha doença. Posteriormente, ele deu um banquete em comemoração ao nosso senhor [o sultão do Marrocos que reinou entre 1331-48] Abu'l-Hasan, para o qual emires, os khatib [médico], o qadi e o pregador foram convidados, e eu fui junto com eles. Foram trazidas cópias do Corão que foi recitado na íntegra, em seguida, eles rezaram por nosso mestre Abu'l-Hasan e também para Mansa Sulayman.
         Quando a cerimônia acabou, fui para frente e saudei Mansa Sulayman. O qadi, o pregador, e Ibn al-Faqih disseram-lhe quem eu era, e ele respondeu-lhes na sua língua.
Eles me disseram: "O sultão lhe diz 'agradeça a Deus'", então eu disse: "Louvado seja Deus e graças em todas as circunstâncias." Quando eu me retirava uma lembrança de boas-vindas foi enviada para mim e levada para a casa do qadi. O qadi a enviou junto com os seus homens à casa de Ibn al-Faqih. Ibn al-Faqih veio correndo de sua casa com os pés descalços, e entrou na minha sala dizendo: "Levanta-te. Roupas e presentes do sultão para você". Eu me levantei pensando tratar-se  vestes de honra e dinheiro, e eis que eram três pães, um pedaço de carne frita em gharti [óleo nativo], e uma cabaça de coalhada azeda. Quando vi essas coisas comecei a rir, e estava espantado com o seu tolo intelecto e seu respeito para dizer coisas insignificantes.

O cerimonial da corte do rei do Mali Sulayman
         Em certos dias o sultão tem audiências no pátio do palácio, onde há uma plataforma debaixo de uma árvore, com três degraus, o que eles chamam de "pempi". É forrado de seda e possui almofadas colocadas sobre ela. [Sobre isso] é colocado o guarda-chuva, que é uma espécie de pavilhão feito de seda, encimado por um pássaro de ouro, do tamanho de um falcão.    O sultão sai de uma porta em um canto do palácio, carregando um arco na mão e uma aljava [estojo para carregar flechas] nas costas. Em sua cabeça, ele tem um gorro de ouro, amarrado com uma faixa dourada que termina estreita em forma de facas, com mais de um palmo de comprimento. Seu traje usual é uma túnica de veludo vermelho, feito de tecidos europeus chamado "mutanfas". O sultão é precedido por seus músicos, que carregava guimbris [guitarras de duas cordas] de ouro e prata, e atrás dele vêm três centenas de escravos armados. Ele caminha, com movimentos muito lentos, e para de tempo em tempo. Quando chega ao pempi ele para e olha em volta, em seguida, sobe-o de forma serena como um pregador subindo um púlpito da mesquita. Quando ele toma o seu assento os tambores, trompetes, cornetas são tocados. Três escravos saem correndo para chamar o suplente e os comandantes militares, que entram e se sentam. Dois cavalos selados são apresentados, juntamente com duas cabras, que servem como proteção contra o mau olhado. Dugha [anunciador] fica no portão e o resto do povo permanece na rua, debaixo das árvores.
         Os negros são de todas as pessoas o mais submisso ao seu rei e ao mais abjeto em seu comportamento diante dele. Eles juram pelo seu nome, dizendo: "Mansa Sulayman ki" [em mandinga, "o Imperador Sulayman ordenou "]. Se ele convocar qualquer um deles, durante audiência no seu pavilhão, a pessoa convocada se despe e veste roupas usadas, remove o turbante e veste um boné sujo, e entra com os seus vestidos e calças levantadas na altura do joelho. Ele vai para frente numa atitude de humildade e de desânimo e bate no chão duro com os cotovelos, então fica com a cabeça baixa e se inclina para trás a ouvir o que ele diz. Se alguém aborda o rei e recebe uma resposta dele, ele descobre as costas e joga o pó sobre sua cabeça e nas costas, como se estivesse banhando-se com água. Eu costumava perguntar como eles não ficavam cegos. Se o sultão oferece quaisquer declarações durante sua audiência, os presentes tiram seus turbantes e os colocam para baixo, em silêncio para escutar o que ele diz.
         Às vezes um deles fica de pé diante dele, e relembra seus feitos ao serviço do sultão, dizendo: "Eu fiz assim e assim por diante tal dia", ou "eu matei fulano de tal em tal dia." Aqueles que têm conhecimento destes fatos confirmam suas palavras simulando um tiro de arco e flecha. Se o sultão diz: "Você falou a verdade", ou agradece a ele, ele tira a roupa e joga terra sobre si. Isto é um sinal de boas-maneiras entre eles.


The travels of Ibn Battuta traduzido por H.A.R. Gibb, Cambridge University Press, 1958 apud LEVTZION, Nehemia & SPAULDING, Jay. Medieval West Africa: views from arab scholars and merchants. Princeton, 2007, 2a. ed.

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