domingo, 20 de outubro de 2013

Visões da África: entrevista com Alberto da Costa e Silva

 Por Guilherme Freitas

Um dos principais nomes dos estudos africanos no Brasil, o historiador reúne em novo livro textos da Antiguidade ao século XIX que demonstram a persistência de mitos e obsessões ocidentais sobre o continente

Alberto da Costa e Silva foi à África pela primeira vez em outubro de 1960, como diplomata, enviado pelo governo brasileiro para acompanhar a independência da Nigéria, que deixava de ser colônia britânica depois de um século e meio. Nas décadas seguintes, voltou diversas vezes a um continente tomado pelas lutas anticoloniais. Participou de missões em Angola, Etiópia, Costa do Marfim, Camarões, Togo, Gabão, Guiné, Senegal, Libéria, entre outros países. Foi embaixador na Nigéria e no Benim. Nessas viagens, acumulou dados que mais tarde reuniu em obras importantes para os estudos africanos no país, como “A enxada e a lança: a África antes dos portugueses” (1992) e “A manilha e o libambo: a África e a escravidão” (2002), ambos publicados pela Nova Fronteira. E aprendeu uma lição sobre o olhar do estrangeiro. 

— Viajando, pude confrontar o que lia e ouvia sobre a África com aquilo que via. Sobretudo, conheci gente. E comecei a tomar cuidado para não cometer os enganos que os viajantes apressados costumam cometer, pois pensam que estão vendo bem quando veem apenas a superfície. É preciso ter paciência no olhar. Principalmente, ter cautela para não construir grandes teses, que geralmente se revelam com alicerces de brisa, sem fundamento — diz Costa e Silva, durante entrevista em seu apartamento no bairro carioca de Laranjeiras, repleto de obras de arte e livros colecionados em seis décadas de relação com a África. 

Em seu novo livro, “Imagens da África” (Penguin/Companhia das Letras), o historiador de 81 anos reuniu fragmentos de textos de viajantes estrangeiros que passaram pela região, da Antiguidade ao século XIX. São mais de 80 relatos de cientistas, exploradores, aventureiros, missionários e burocratas, que mostram a persistência do fascínio ocidental pela África, mas também de mitos e estereótipos sobre o continente cultivados ao longo dos séculos.

Homens com rabo e plantas de ouro

Costa e Silva planejou o livro não como uma antologia de ensaios e sim uma coleção de imagens, “como uma série de fotografias em um álbum”, pinçadas das obras de referência que consultou durante a carreira. Nessa coleção, há desde o espanto de um traficante de escravos britânico do século XVIII com o ritual que se seguia à morte dos reis do Daomé (“As viúvas do soberano morto quebram e destroem móveis, objetos e ornamentos [...]. Em seguida, matam-se entre si”) ao desconcerto de um comerciante português do século XVI que viu no Congo, pela primeira vez, “um animal que chamam zebra”.

O volume traz ainda algumas das histórias preferidas do pesquisador, como o relato de um historiador árabe do século XIV sobre um rei do Mali que, convencido da existência de terras do outro lado do Atlântico, partiu com duas mil embarcações e nunca mais voltou — acredita-se que pode ter chegado à América antes de Colombo.

Para além dos elementos pitorescos, sobressai em “Imagens da África” a recorrência de certas lendas, como as afirmações, repetidas por viajantes de diversas épocas e procedências, sobre homens com rabo ou terrivelmente deformados “pelo sol do Equador” e plantas de ouro brotando da terra “como cenouras”. Mitos que, se já não têm mais credibilidade, espelham uma ignorância ocidental sobre a África que continua a existir, diz Costa e Silva.

— O livro vai até o século XIX, mas se ele se prolongasse até nossos dias, veríamos que as histórias de Tarzan não morreram de todo no espírito dos ocidentais — provoca o historiador. — Estereótipos persistem e se modificam no tempo, vão assumindo novas formas, mas se manifestam sempre como a postura de quem se considera melhor, mais racional, de quem vê o outro num estágio inferior ao seu. Ainda hoje, os ocidentais chegam à África achando que está tudo errado e que são eles que vão consertá-la.

Para ilustrar a tese, Costa e Silva cita os testemunhos deixados por viajantes que desembarcavam “com a noção de que estavam entrando num território que precisava ser aperfeiçoado, corrigido”, diz, “como se a África estivesse fora dos eixos e só a Europa pudesse fazê-la funcionar”. O historiador chama atenção para a presença quase escamoteada, nesses textos, de africanos que, embora fossem retratados como “destituídos de inteligência superior”, orientavam os forasteiros sobre as rotas, os obstáculos e os hábitos locais.

— No fundo, eram os africanos os mestres de geografia, de cultura e de sobrevivência. Conduziam os estrangeiros como guias de cegos.

Entre os viajantes elencados em “Imagens da África” há um punhado de brasileiros, como o padre baiano Vicente Ferreira Pires, que produziu rara documentação sobre a transição política no Daomé no início do século XIX, e o matemático e astrônomo paulista Francisco José de Lacerda e Almeida, enviado pela Coroa para estabelecer uma ligação por terra entre Moçambique e Angola no final do século XVIII. Lacerda e Almeida morreu um ano depois de chegar à África, durante uma expedição que pretendia atravessar o continente de leste a oeste, e deixou relatos deslumbrados: “Em pouco mais de dois meses que estive em Moçambique nem uma só vez choveu, e todos os dias e noites foram claríssimos e os mais belos do mundo”.

Embora importantes, esses textos se endereçavam sobretudo ao governo, e por isso tiveram pouca difusão. Segundo Costa e Silva, que reuniu textos sobre a relação entre Brasil e África no livro “Um rio chamado Atlântico” (Nova Fronteira, 2005), ainda hoje não se tem notícia de muitos relatos detalhados de brasileiros sobre contatos com o continente e seus habitantes.

— Os brasileiros que atuavam no tráfico negreiro sabiam que lidavam com organizações sociais complexas, cidades-Estado sofisticadas, mas só estavam interessados em levantar as informações essenciais para seus negócios. Em todas as culturas em que houve escravidão o africano foi menosprezado, reduzido na visão que se tinha de sua humanidade, para justificar o fato de ter sido escravizado.

Integrante da Academia Brasileira de Letras, o historiador acredita que essa situação mudará com a consolidação do trabalho de novas gerações de pesquisadores que se mostram mais interessados nos estudos africanos.

— Antigamente, os pesquisadores brasileiros passavam direto pelos documentos sobre a África, achavam que isso não tinha valor algum. Hoje isso mudou, e seguramente ainda vai se descobrir muita coisa. Estamos só começando nossa garimpagem.

Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/01/05/visoes-da-africa-entrevista-com-alberto-da-costa-silva-481078.asp

Nenhum comentário:

Postar um comentário